quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Narrativa





Eu sou o Olvido, vim para alarmar a humanidade. Eu apareço depois de uma série de fracassos (que também podemos nomear como excessos). Eu sou o puro esquecimento daqueles que poderiam -de fato todos podem- mas não foram. Eu sou o plano que dá errado, o roubo malsucedido, a fera que devora seu adestrador, eu sou o admoestado que admoesta e dá a sentença final.

Eu não sou o Tempo, este implacável Cronos que devora tudo que cria; eu sou, talvez, alguma cria desgarrada de teu ventre e teus escrotos. Eu apenas sou. Aprendi o valor e a dor do esquecimento, aprendi sua necessidade vital. Com os antigos gregos aprendi a dialética do que foi, do que é, e do que poderia ser (do nada). Como disse anteriormente, eu apareço depois de uma longa jornada de fracassos excedidos, eu apareço para aqueles poucos que ultrapassam a tragédia cômica da autofagia. Consumir a si mesmo, consumir os próprios erros para continuar a sobreviver é apenas insistir. Eu apareço para apagar estes seres da existência neste planeta difuso e maravilhoso. Eu mostro que a vida é uma passagem só de ida e que, justamente por tal fato, viver é resistir e não insistir.

Certa vez, há muitos anos atrás, conheci um poeta. Não era dos maiores, não adormecia entre os cânones de sua língua, era apenas um poeta. Um triste e melancólico poeta. Apareci para este rapaz em uma noite quente de Dezembro, quando ele julgava ser necessário dar cabo de sua vida. Ele havia escrito alguns livros, tido pouco ou quase nenhum destaque no mundo das letras. Ele insistia. Eis o erro deste jovem fazedor de versos. A noite era quente, agitada, o jovem havia acabado de escrever um soneto, mais um soneto indecifrável, estranho, escrito e dedicado a ninguém, segundo o próprio. Eu, enquanto Olvido, sou o que está entre. Sou a sombra que assombra as sombras dos homens. Eu sou o esquecido, mas aquele que nunca esquece. Lembro-me perfeitamente dos versos daquele jovem incauto, ei-los:


A anacronia que prevalece
nos meandros destas sepulturas
qual chamamos de esculturas
pessoais, é o que tece
o silêncio enquanto resíduo
daquilo que atordoa
a fissura que ecoa
o tão proclamado indivíduo.
Do ruído cultivado lapso
a lapso, retiro intenções
fazendo algumas considerações
sobre o iminente colapso
que condeno neste verso
sem qualquer moralidade
escrito para a humanidade
adoecida de modo perverso.

O título destes versos era algo como "In Memoriam". Penso que o jovem poeta colocara este título para designar o soneto enquanto testamento. Eu aprecio esta capacidade humana de fazer testamentos; ainda em vida atribuir e distribuir os seus bens, os seus objetos de maior apreciação para outrem, assim que o canto da morte soar em seus ouvidos. Eu aprecio este movimento humano que infelizmente nos tempos atuais, degradados e brutalmente corrompidos, está cada vez mais escasso. Pois bem, estes versos dedicados a ninguém segundo o próprio criador tinham, na verdade, um apelo ao mundo todo. Uma vontade de ser olhado e mais -ainda- uma vontade de olhar o mundo de forma diferente.

O jovem e triste e melancólico e, de certa fora, infantil poeta estava no limiar; com uma navalha nas mãos olhava para o espelho buscando olhar o mundo, em um gesto último e fatal, estava pronto para degolar-se, foi quando fiz minha aparição e indaguei-o.

- Jovem poeta, o que queres com isso? Disse a ele.
- Quero ser reconhecido. Ele me respondera
- Queres ser reconhecido através da morte induzida? O que é reconhecimento para ti?
- Só a morte liberta das agruras da vida, do esquecimento das pessoas, da dor de viver. O sangue é o tributo que pago aos deuses obscuros para levarem a minha alma. Quem sabe assim as minhas palavras entram nas carnes da eternidade e reconheçam o meu valor. Aliás, quem é você?
- Eu sou o Olvido. O que está entre. O que vai além do esquecimento. Apareci a ti, poeta, para primeiro avisar-te e depois levar-te aos confins da nulidade.
- Avisar-me?
- Exatamente. Avisar-te que a morte é pior que o esquecimento. A morte gloriosa, honrosa, a morte soberba, ao fim de uma vida é consoladora, apaziguadora, é o verdadeiro nirvana dos orientais. Entretanto a morte induzida, a morte precoce, a autodegolação é apenas azedume. É apenas um evento cotidiano e, na verdade, me ajuda muito a coletar mais uma alma fracassada. Você não é ninguém, não será ninguém. Teseu foi ninguém e tornou-se alguém. Tu te lembras da história de Teseu?
- Mas é claro, velhote! Um dos grandes heróis da antiguidade. Quisera eu ser como Teseu e não mais um plebeu rebaixado, atirado nas esquinas da existência, esperando -sempre- pelo pior. Afogado em minha própria inanição sentimental.
- Saibas jovem, que esta é uma decisão tua e apenas tua. É tua responsabilidade. Cada emoção, fracasso, gozo, baixeza, cada artifício do Destino, ao final de tudo, é sempre responsabilidade tua. Saibas disso. Mas, enfim, chega de falatório. Estas pronto para tornar-te finalmente Ninguém?
- Eu já sou ninguém. Meu nome é ******************, mas me reconheço apenas como ninguém. Estava para acabar com este sofrimento quando você apareceu, fantasma maldito!
- O mundo não terá dó de ti, poeta. Dar cabo de tua vida não trará glórias, apenas o pior dos esquecimentos. Mas, neste teu engano, posso te auxiliar, pegue em minha mão e te levo deste mundo, não será mais Alguém, nenhuma pessoa neste ou em todos os outros mundos lembrara-se de ti. Será apenas poeira. Será apenas quase. Será o não-ser que tanto queres e não percebes.
- Não acredito em você. Todavia, dê-me a sua mão e vamos embora deste lugar. Eu não aguento mais.

E com estas palavras o poeta deixou de existir. A única coisa que sobrou (por descuido meu, ou por, em meu íntimo, acreditar na poesia deste jovem que era para ter sido e não foi) fora o soneto que expus há pouco. Talvez eu acredite que a humanidade adoeceu há muito tempo e que homem é uma longa série de anacronias bem sucedidas. Talvez.

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